Limeira Mil Grau

TOP GUN: MAVERICK (2022) – Traumas de um passado nostálgico

Atenção: Este texto contém spoilers!

Duradouras ou passageiras, a cultura é repleta de tendências que, com o tempo, moldaram aspectos de suma importância para a evolução da forma de se realizar uma obra de arte. Na música, gêneros distintos como Blues, Country e Jazz viveram dias de glória que, futuramente mescladas, seriam as principais responsáveis pela criação de um dos estilos musicais que mais caracterizou o século XX: o Rock Clássico – até ser substituído por uma nova moda no universo da música. Este é apenas um exemplo do processo cíclico de mutação experienciado constantemente no meio artístico. Como uma Fênix, o velho se transforma em novo; e para os saudosistas que rejeitam tais ressignificações, lamentar pelas cinzas de outrora é o único ato possível.

De certa forma, é através dessa perspectiva que o diretor Joseph Kosinski (Tron, o Legado e Oblivion) se ancora para pressionar o gatilho de partida desta continuação de um filme produzido em 1986. 

Após os créditos iniciais estampando o nome de Tom Cruise como estrela, imagens de caças voando rasantes no céu ao som de Danger Zone (música de Kenny Loggins) introduzem o espectador ao filme – assim como no original. Logo de início, ao espelhar a abertura do primeiro longa, ‘Top Gun: Maverick’ resgata o sentimento nostálgico de uma audiência sedenta por reviver sensações poderosas que apenas as memórias do passado podem gerar. Um passado que, semelhante à audiência, também se ancora na persona de Maverick, protagonista interpretado por Tom Cruise.

Tom Cruise retorna ao papel de Pete “Maverick” Mitchell. (Foto: Divulgação/Paramount Pictures)

“Sua espécie está em extinção”, diz o superior de Cruise após seu personagem roubar um caça e ultrapassar a velocidade máxima atingida pela tecnologia vigente, provando que as raízes conseguem se igualar – e até superar – a atualidade. De início, esse é o maior desafio de Maverick: resistir à atualidade que tenta constantemente o engolir. Seu modo de pilotar é desprezado pelos generais; suas técnicas de ensino, reprovadas; e sua filosofia – “Não pense, aja!” – condenada. Logo, apesar de ser o melhor piloto da aeronáutica estadunidense, Maverick encontra-se no mesmo posto do longa de 86, praticamente um ser destoante da modernidade. Fiel ao passado, o protagonista não encontra espaço para prosperar num mundo que se recusa assimilar a relevância que certos aspectos de tempos distantes ainda possuem. Para a nova geração do longa, o velho deve morrer, não se reinventar – como a Fênix mencionada anteriormente.

Assim, durante todo o primeiro ato, a direção de Kosinski estabelece um vínculo afetivo com a história de Maverick que desafia os preceitos de não coexistência entre passado e futuro. Por um lado, a própria estrutura e elementos narrativos quase idênticos ao do primeiro filme simbolizam essa questão perfeitamente: o par romântico como apoio para o desenvolvimento de Cruise; o caráter baseado em estereótipos de virilidade masculina dos personagens; e, numa camada mais profunda, até mesmo a utilização de efeitos práticos no lugar de computação gráfica para as sequências de ação dos caças. 

Tom Cruise andando de moto com seu par romântico numa diferença de 36 anos entre ambos os ‘Top Gun’.

Atualmente, blockbusters com esses métodos de filmagem são extremamente raros. Como Maverick, a simples existência de uma continuação como essa possui um certo papel de resistência ao modelo vigente de filmes comerciais, principalmente aqueles que se utilizam da nostalgia como muleta narrativa. Aqui, entretanto, o saudosismo também é incorporado como uma maneira de confrontar esse local no tempo seguro do protagonista, estabelecendo uma surpreendente complexidade para a aparente unidimensionalidade que cerca a primeira camada do longa – homens sarados treinando para uma “missão impossível”.

Ao lado do conforto, as memórias de Maverick perante os acontecimentos do primeiro filme também são repletas de gatilhos acarretados por traumas profundos; sendo a morte de seu melhor amigo, Goose, a simbolização máxima dessas cicatrizes.

Dentre diversos momentos, a primeira cena no bar – em que os pilotos se conhecem – é a que melhor demonstra esse aspecto. Após ser expulso pela dona do estabelecimento como uma brincadeira camuflada de flerte, Maverick observa aquela cena dos soldados se divertindo em meio à conversas e canções com um olhar de saudades. Antes, era ele que trocava risadas com seus companheiros dentro do bar; agora, resta-lhe apenas observar. Porém, ao avistar o filho de Goose – a nova geração – tocar o piano da mesma maneira que o pai, o personagem de Cruise é forçado a encarar o mesmo passado que lhe acalenta, mas através de uma perspectiva espinhosa impossível de escapar.

À esquerda, o filho de Goose (Miles Teller) tocando piano como o pai (Anthony Edwards), à direita.

E quando há uma tentativa – como na visita de Maverick à seu velho amigo, Iceman – a montagem compreende o peso dramático do momento e articula em si um tom fúnebre necessário para o desenvolvimento da cena em questão; pois apesar da presença de Iceman servir como uma espécie de “apoio terapêutico” para o protagonista, o fato do personagem estar à beira da morte – comunicando-se apenas por uma tela de computador – consequentemente fragiliza ainda mais uma lacuna do passado de Maverick.

Nessa lógica, a fotografia de tons amarelados – praticamente simulando um entardecer – potencializa ainda mais toda a gama de sentimentos conflitantes do protagonista. Nos primeiros dois atos, o filme parece estar constantemente preso no tempo; como se o Sol, durante os dias, estivesse no remate da existência, prestes a se pôr. De certa forma, é como se as sensações de Maverick ditasse simbolicamente as características temporais do seu entorno; ou seja, se o protagonista enxerga o mundo com um olhar saudosista repleto de  traumas, assim ele será. O próprio poder imagético de um entardecer representa muito bem essa questão: um astro (tanto o Sol quanto Cruise) nos resquícios de vitalidade, se ancorando no alto do céu. 

Replicando cena do primeiro longa, Maverick exercita a união dos personagens numa jogatina na praia. (Foto: Divulgação/Paramount Pictures)

Em suma, apesar de ser um blockbuster de ação, o filme compreende a necessidade que alguns momentos singelos – baseados em simples trocas de diálogos filmados em plano e contra plano – possuem não apenas para o desenvolvimento narrativo da obra, mas também no engajamento futuro das cenas de ação. Afinal, é graças a essa relação dúbia que Maverick possui com o próprio passado que todo o último ato torna-se empolgante de assistir. 

Após dissecar de dentro pra fora todos os anseios e inseguranças do estrela/protagonista, a batalha final supera o simples entretenimento escapista e adota para si uma camada simbólica bastante profunda de confronto contra todo esse contexto saudosista citado até aqui. Ao finalmente aceitar o filho de Goose como seu “wingman” (e todo o perigo envolvido nessa escolha), Maverick rejeita o passado como um local exclusivamente reconfortante e enfim abraça todas suas facetas, sejam boas ou ruins. 

Logo, o peso da missão vai além de sua simples concretização, pois o verdadeiro sucesso ocorre apenas quando todas as vidas ali presentes são preservadas; demonstrando que, no fim, Maverick continua se aproveitando do passado, mas como uma ferramenta de aprendizado sobre confiança verdadeiramente útil para si e aqueles que o cercam.

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