Em Netuno e Urano, a pressão resultante dos enormes campos gravitacionais possibilita a existência de grandes quantidades de gelo superiônico nas camadas internas
Por: CNN
O gelo comum – esse que é produzido nas geladeiras domésticas e conhecido cientificamente pelo nome de gelo Ih – não é a única fase cristalina da água. Há mais de 20 diferentes fases possíveis. Uma delas, chamada de “gelo superiônico” ou “gelo XVIII”, apresenta especial interesse. Entre outros motivos, pelo fato de compor grande parte do estofo dos planetas Netuno e Urano, também conhecidos como “gigantes de gelo”.
Na fase cristalina superiônica, a água perde sua identidade molecular (H2O); os íons negativos de oxigênio (O2-) dispõem-se em uma rede cristalina extensa; e os prótons, que constituem os íons positivos de hidrogênio (H+), formam um fluido que circula pela rede.
“A situação é análoga à de um metal condutor, como o cobre, com a grande diferença de que, no metal, são os íons positivos que formam a rede cristalina, enquanto os elétrons, portadores da carga elétrica negativa, ficam relativamente soltos, circulando através da rede”, diz o pesquisador Maurice de Koning, professor titular do Instituto de Física Gleb Wataghin da Universidade Estadual de Campinas (IFGW-Unicamp).
De Koning coordenou o estudo que resultou em um artigo publicado como destaque de capa do periódico Proceedings of the National Academy of Sciences of the United States of America (PNAS).
Como explica o pesquisador, o gelo superiônico se forma sob temperaturas extremamente elevadas, no patamar de 5 mil kelvins (4,7 mil °C), e pressões altíssimas, da ordem de 340 gigapascais. Esse valor é mais de 3,3 milhões de vezes maior do que o da pressão atmosférica padrão da Terra. Por isso, é impossível ter gelo superiônico estável no ambiente terrestre.
Em Netuno e Urano, porém, a pressão resultante dos enormes campos gravitacionais desses planetas gigantes possibilita a existência de grandes quantidades de gelo XVIII nas camadas internas mais próximas dos respectivos núcleos. Medidas sismográficas confirmam que isso realmente acontece.
“A eletricidade conduzida pelos prótons através das redes cristalinas de oxigênios está intimamente ligada à questão de por que os eixos dos campos magnéticos desses planetas não coincidem com seus eixos de rotação. Eles se apresentam, de fato, bastante deslocados”, afirma De Koning.
Medidas feitas pela sonda espacial Voyager 2, que se aproximou desses planetas distantes em sua viagem para os confins do Sistema Solar e além, mostram que os eixos dos campos magnéticos de Netuno e Urano formam ângulos de 47 graus e de 59 graus com os respectivos eixos de rotação.
Experimentos e simulações
Na Terra, um experimento reportado na revista Nature em 2019 conseguiu produzir uma minúscula quantidade de gelo XVIII que se manteve por um nanossegundo, isto é, um bilionésimo de segundo, antes de se desestruturar. Isso foi conseguido por meio de ondas de choque criadas por laser e lançadas sobre uma amostra de água.
Conforme descreveram os autores do experimento, seis feixes de laser de alta potência foram disparados em uma sequência temporal precisa para comprimir, por meio de ondas de choque, uma fina camada de água encapsulada entre duas superfícies de diamante. As ondas de choque reverberaram entre os dois diamantes rígidos, proporcionando uma compressão homogênea da água que resultou, por um intervalo de tempo diminuto, na fase cristalina superiônica.
“No estudo realizado agora, não fizemos um experimento físico real, mas usamos simulação computacional para investigar as propriedades mecânicas do gelo XVIII e descobrir como suas deformações influenciam os comportamentos observados nos planetas Netuno e Urano”, relata De Koning.
O pesquisador conta que o estudo se valeu da Teoria do Funcional da Densidade (Density Functional Theory ou DFT), um método derivado da mecânica quântica e usado em física dos sólidos para resolver estruturas cristalinas complexas. “Investigamos, primeiramente, o comportamento mecânico de uma fase sem defeitos, que não existe no mundo real. Depois, acrescentamos defeitos para saber que tipos de deformações macroscópicas resultam disso”, explica.
Quando se fala sobre defeitos em cristais, a expressão geralmente se refere a defeitos pontuais, caracterizados pela vacância de íons ou pela intrusão de íons de outros materiais na rede cristalina. Porém, não é disso que se trata aqui. O defeito mencionado por De Koning não é pontual, mas linear. É chamado de “discordância” e ocorre quando uma fase do cristal desliza sobre outra fase. O resultado é parecido com o que ocorre quando se empurra um tapete sobre o chão no sentido longitudinal, produzindo uma ondulação transversal no tapete.
“Em física de cristais, a discordância foi postulada em 1934. Mas só foi observada experimentalmente pela primeira vez em 1956. É um defeito que explica um grande número de fenômenos. Costumamos dizer que ele está para a metalurgia assim como o DNA está para a genética”, sublinha o pesquisador.
No caso do gelo superiônico, a soma de discordâncias produz uma deformação macroscópica bastante conhecida por mineralogistas, metalurgistas e engenheiros: o cisalhamento. “Em nosso estudo, calculamos, entre outras coisas, o quanto é preciso forçar o cristal para ele se romper por meio de cisalhamento”, destaca De Koning.
Para isso, o pesquisador e seus colegas precisaram considerar uma célula bastante extensa do material, com cerca de 80 mil moléculas. Os cálculos exigiram técnicas computacionais extremamente pesadas e sofisticadas, com o emprego de rede neural e aprendizado de máquina (machine learning), e a composição de várias configurações baseadas em cálculos DFT.
“Este foi um aspecto bastante interessante de nosso estudo, a integração de conhecimentos de diversas áreas: metalurgia, planetologia, mecânica quântica e computação de alto desempenho”, conclui De Koning.
O trabalho recebeu apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) por meio de Bolsa de Pós-Doutorado concedida ao primeiro autor, Filipe Matusalém de Souza, sob a supervisão de De Koning; de um Projeto Temático coordenado pelo pesquisador da Unicamp Alex Antonelli; e do Centro de Engenharia e Ciências Computacionais (CCES), financiado no âmbito do programa Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPIDs).