Atenção: Este texto contém spoilers!
Ao longo de 80 anos desde a criação do Homem-Morcego por Bob Kane e Bill Finger, diversas foram as visões e interpretações que artistas de tantas áreas desenvolveram para o personagem, seja em quadrinhos, séries de TV, animações, jogos e, claro, cinema. Desse modo, apesar de parte da cultura nerd dizer o contrário, não há um consenso exato sobre a verdadeira essência desse herói. Após tantas décadas de ressignificações, o Batman caricato de Adam West tornou-se tão “morcego” para o imaginário popular quanto o Batman realista interpretado por Christian Bale na trilogia de Christopher Nolan. No entanto, não foi apenas o herói propriamente que passou por distintas visões criativas, mas também todo o entorno responsável pelos seus traumas e motivações no combate ao crime: Gotham City. É impossível dissociar o caráter individual de cada adaptação do Homem-Morcego com o cenário que o cerca; ele é, praticamente, um reflexo da essência do personagem.
Em 1989, no universo construído por Tim Burton, a cidade possuía uma artificialidade gótica que mesclava um caráter lúdico característico de histórias em quadrinhos com um tom sombrio que tanto marcou a filmografia do cineasta. Com isso, ao trazer personalidade para Gotham, Burton dava, literalmente, vida para a cidade; ou seja, ela não era apenas um simples plano de fundo para as ações do filme, mas uma personagem de fato. Era quase como se a arquitetura de Gotham contagiasse a ambígua natureza gótica e caricata presente nos personagens; uma ideia espiritual que o diretor Joel Schumacher herdaria, porém renegando o toque sombrio de Burton e intensificando esse exagero consciente.
Por outro lado, Christopher Nolan optou pelo caminho oposto ao dirigir a trilogia do Cavaleiro das Trevas. Nesse caso, com a proposta de retratar o Batman de maneira compulsoriamente realista, a Gotham do diretor é caracterizada como qualquer outra localidade urbana dos Estados Unidos. Não à toa, Nolan escolheu Chicago como a cidade dos longas, filmando-a exatamente de tal forma, sem filtros. Com isso, o Batman militar idealizado pelo diretor atua na mesma ambientação próxima da realidade com que Al Pacino e Robert De Niro rivalizam ao trocarem tiros nas ruas de ‘Fogo Contra Fogo’ (1995), longa policial que serviu de principal inspiração estética para Nolan. Porém, por mais que a ideia de um Batman realista seja totalmente válida, o que ocorre nessa trilogia é a criação de uma Gotham vazia e apática que, aqui sim, serve apenas como um mero plano de fundo para o personagem.
Assim, após anos de distintas idealizações para o Batman, o diretor Matt Reeves (Planeta dos Macacos: O Confronto e Cloverfield) surge com a proposta de trazer mais uma versão para o herói, assumindo o potencial risco de sofrer inúmeras comparações com obras passadas. Porém, ironicamente, o diferencial da direção de Reeves encontra-se justamente na articulação de diversos conceitos já vistos em tantas outras histórias do Homem-Morcego (Batman: Ego; O Longo Dia das Bruxas; Ano Um), mas com um olhar revigorante que escapa do genérico e preenche o filme de características visualmente únicas e marcantes na coleção de adaptações do personagem para o cinema.
Para além dos quadrinhos, a lista de inspirações do cineasta para a composição narrativa do filme é extensa: Fincher, Scorsese, Polanski e principalmente toda a essência temática envolta de criminalidade do gênero noir. No entanto, o resgate de tendências do cinema de Burton e Nolan foi certamente a ideia que melhor ajudou Reeves na concepção geral do longa, criando um universo próprio a partir de uma mescla entre conceitos de ambos os cineastas. Sim, o aspecto sombrio e realista desse novo Batman possui semelhanças com ‘O Cavaleiro das Trevas’ (2008), mas há um importante diferencial. Assim como Burton, Matt Reeves volta a transformar Gotham City em uma personagem; porém, nesse caso, a cidade trabalha essencialmente como a vilã central do longa.
A priori, Charada e Batman possuem objetivos relativamente semelhantes no filme: expor a corrupção que, consequentemente, gera a criminalidade de Gotham; o método para tal, entretanto, é o diferencial entre ambos. Para esse propósito, a ideia de Gotham como verdadeira vilã torna-se uma escolha extremamente acertada, pois além de evidenciar o lado obscuro desse emaranhado corrupto que corrói a cidade através de aspectos visualmente concretos, também há uma conexão direta com todo o arco de reconstrução das ideologias do herói.
Praticamente, essa é uma Gotham que parece nunca ver a luz do sol, como se a noite realmente tivesse dominado qualquer aspecto diurno que pudesse penetrar na cidade. O próprio Batman assume as trevas que cercam a fotografia do filme como um instrumento de medo e, principalmente, vingança. Desse modo, quando há relances de uma iluminação evidente na ambientação, cria-se quase uma espécie de choque envolta de toda a majoritária escuridão de Gotham City. Conceitualmente, é como se o diretor criasse um embate estilizado entre luz e trevas, pois se a escuridão da cidade esconde todos os malefícios criminosos inertes à ela, cabe justamente à luz iluminar e expor toda a sujeira. O Charada, inclusive, só consegue matar o mafioso Falcone quando esse é, precisamente, exposto abaixo da luz de um poste. Basicamente, a podridão de Gotham encontra-se nas raízes da cidade, já que tentar encontrar um culpado para carregar todo o fardo seria uma tarefa inútil; como qualquer noir, o problema central é sistêmico.
Devido esse fato, a interpretação de Robert Pattinson se transforma na caracterização mais sombria do personagem até agora. É um Bruce Wayne extremamente perturbado com os traumas da vida, descontando suas frustrações na vingança (inicialmente disfarçada de “combate”) contra o crime. No entanto, somente após 3 horas de uma incessante caçada de gato e rato contra o Charada é que o Homem-Morcego compreende essa dinâmica dualidade mencionada entre luz e trevas (principal responsável por tornar Gotham a vilã alegórica do longa). No fim, o herói renega as sombras e utiliza a iluminação de um sinalizador para salvar pessoas em perigo na obscuridade dominante da cidade; cultivando, simbolicamente, um senso de esperança na população de Gotham, vencendo a vilanesca escuridão instauradora de medo.
Em suma, o Batman de Matt Reeves soa como um alento frente a tantos filmes recentes de heróis que trabalham em prol de algoritmos sobre “como agradar os fãs”. Toda a concepção simultânea de uma Gotham realista e estilizada funciona precisamente graças ao trabalho de um diretor comercial com liberdade criativa suficiente para construir um rico universo coeso capaz de fazer qualquer blockbuster atual brilhar – assim como o próprio Cavaleiro das Trevas ao fim do filme.