Atenção: Este texto contém spoilers!

Chaplin sempre foi aclamado pela astucidade na comédia durante os primórdios do cinema. Claro, não apenas pela qualidade e eficiência por si só, mas também pelo modo que desenvolvia seus comentários sobre a sociedade a partir de elementos do gênero, tornando-os dois fatores intrínsecos um no outro.

Carlitos (The Tramp), como sempre, é um homem pobre. Um homem que vive em condições miseráveis num ambiente aparentemente glamoroso e convidativo que é a cidade. De tal forma, a direção evidencia bem os espaços a partir de imagens limpas, visíveis e com uma construção de ambiente perfeccionista, denotando um fator de disparidade visual evidente ao contemplarmos Carlitos perambulando por esses cenários. Fator esse presente logo na primeira sequência do filme, com a inauguração de uma estátua de importância para a cidade, em cenas com uma fotografia e design de produção de tons brancos bastante evidentes para, instantes depois, ser revelado a figura do protagonista dormindo na dita estátua com suas roupas escuras e furadas; quase como se, na visão da elite daquela cidade, Carlitos estivesse como uma mancha, sujando aquele “patrimônio de relevância”.

Sem apreço por figuras reverenciadas pela elite burguesa, Carlitos dorme em estátua recém-inaugurada.

Paralelamente, a comédia ingênua do filme – além de sempre muito bem coreografada – auxilia na construção dessa ideia de disparidade de classes, evidente nas cenas entre Carlitos e seu “amigo” bêbado da alta sociedade. Após o protagonista salvar esse homem alcoolizado de cometer suicídio, o burguês desenvolve duas personalidades: a amigável e empática contra a amarga e indiferente. Enquanto o homem permanece bêbado, há uma demonstração de extrema gratidão pela atitude de Carlitos; e Chaplin – enquanto diretor – denota essa característica através dos gestos espalhafatosos de seu ator. Tal elemento, além de auxiliar na construção de piadas imediatas, ajuda no estabelecimento dessa disparidade mencionada ao contrastar com o gestual do homem rico em seus momentos sóbrios (quando esse até mesmo se esquece da identidade de Carlitos), transformando os seus trejeitos únicos e exagerados – semelhantes ao de Chaplin – como o de um “burguês figurante” qualquer do longa – que possui relevância para a sociedade daquela cidade, mas não no engajamento da audiência simpatizadora de boas ações dos protagonistas em tela.

Consequentemente, é justo nesse aspecto que o filme ganha sua maior força. Afinal, Chaplin parece saber que, em um filme mudo, o personagem mais relevante para nossa atenção é aquele com a maior quantia de características visuais marcantes, chamando mais atenção do nosso olhar – o que talvez explique o fato de Chaplin ter continuado produzindo filmes mudos por anos, mesmo após o advento do som. Assim, sendo esse o caráter do personagem principal em relação aos demais totalmente padronizados e previsíveis, o diretor almeja transmitir a ideia do quanto Carlitos é mais livre por dentro do que qualquer um daquela alta sociedade.

Carlitos salva o homem rico de cometer suicídio.

Sendo assim, o aspecto visual é um elemento muito importante para o desenvolvimento da narrativa; o que torna ainda mais poderoso o fato da paixão do personagem de Chaplin ser uma mulher cega. Afinal, como a garota poderia de fato conhecer o homem que a ajuda durante todo o filme – igual nós, espectadores – se ela está impossibilitada de assimilar o modo no qual o personagem se difere dos ricos indiferentes ao expressar sua bondade através do gestual?

Portanto, a cena final conclui a obra com chave de ouro quando, curada de sua cegueira por uma cirurgia que Carlitos paga com seu esforço ao longo do filme, esta não o reconhece com os trajes rasgados e sujos, diferente da imagem que tinha sobre a aparência de seu suposto salvador – um filantropo. Até que o toca e, ao sentir seu gestual, diferente de todos os outros, ela de fato consiga dizer: “Sim, agora posso ver”.

A dama e “O Vagabundo”.