Atenção: Este texto contém spoilers!

Filmes não precisam, necessariamente, possuir uma mensagem para serem considerados bons. No ensaio “Contra a Interpretação”, de Susan Sontag, a autora e crítica de arte norte-americana reflete sobre como há uma tendência em considerar o conteúdo de uma obra como essencial, tornando a forma, sob essa perspectiva, apenas um mero acessório. Para além, Sontag argumenta que nessa busca incessante por encontrar a “mensagem final e verdadeira” de uma obra através de regras preestabelecidas de interpretação, a consequência é o esvaziamento da arte e de todo seu potencial para além de sua dita “mensagem”.

Entretanto, apesar de Sontag estar certa, há de considerar o valor de obras que, desprovidas de medo, assumem a mensagem pensada pelo autor sem a menor sutileza – e que transforma dessa característica sua principal força narrativa. Barbie (2023), de Greta Gerwig, segue exatamente por esse caminho.

Margot Robbie como Barbie no mundo de Barbieland (Foto: Divulgação/Warner Bros.)

Escrito em conjunto com seu marido, Noah Baumbach, Gerwig possui o claro propósito de criticar o patriarcado – palavra inclusive repetida à exaustão ao longo do filme – através do uso de uma comédia escrachada e frontal. A diretora claramente não estava preocupada em ser sutil ou se aprofundar nos temas levantados; o que pode soar como uma característica negativa, mas que na verdade condiz perfeitamente com a maneira como Gerwig conduz a narrativa. Afinal, o filme respira artificialidade do começo ao fim, seja pelos cenários construídos especialmente para se assemelhar a brinquedos, as atuações caricatas ou os diálogos extremamente expositivos.

Nessa perspectiva, Barbie (2023) me remeteu à abordagem do cineasta John Carpenter em Eles Vivem (1989) – dada as devidas proporções, claro. No filme, o protagonista encontra um óculos escuro capaz de mostrar a verdadeira realidade daquele mundo. Com o intuito de criticar o capitalismo e a maneira como esse sistema nos torna escravos do consumismo, Carpenter utiliza uma abordagem direta ao mostrar – sob a perspectiva dos óculos escuros – a burguesia literalmente como monstros extraterrestres que parasitam os seres humanos – isto é, a classe trabalhadora -, impedindo-os de ascenderem socialmente e espalhando sinais com as palavras “OBEDEÇA” e “ME COMPRE” em propagandas e revistas em bancas de jornal.

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Um extraterrestre disfarçado de burguês numa banca de jornal em cena de Eles Vivem (1989) (Foto: IMDb)

Desse modo, Carpenter abraça o aspecto “crítica social foda” de seu filme, sem se preocupar em intelectualizar a óbvia crítica que propunha; tornando essa frontalidade justamente a força e eficiência do comentário que o filme articula. Em Barbie (2023), porém, Greta Gerwig vai um pouco além – tanto para o bem quanto para o mal.

Aqui, a diretora aproveita ao máximo todo o potencial dos cenários de Barbieland para construir uma sensação de artificialidade extrema que complementa a comédia pensada pelo roteiro. O fato do mundo de Barbie depender da direção de arte para existir ao invés de um fundo verde é ótimo nesse sentido, pois é possível sentir a realidade dessa artificialidade de uma estética de estúdio e, consequentemente, brincar com ela – como na cena em que o Ken tenta surfar em uma onda falsa para impressionar a Barbie. Porém, é através das atuações exageradas e diálogos expositivos que Greta parece encontrar o foco para a condução da comédia e, consequentemente, a crítica como um todo. 

Com aparência de estúdio, Greta constrói um mundo de fantasia que não se leva a sério. (Foto: Divulgação/Warner Bros.)

Todos os personagens desse filme, em maior ou menor grau, são relativamente idiotas – sendo os homens, como alvos, os principais. E para além da atuação de Ryan Gosling – que é sempre ótimo fazendo comédia – e todos os outros Ken, Gerwig usa e abusa de diálogos expositivos do começo ao fim. Não à toa, o filme possui uma narradora autoconsciente da proposta cômica da diretora, constantemente tecendo comentários irônicos sobre o desenrolar da trama. Em diversos momentos, personagens femininas discursam em monólogos sobre a opressão do patriarcado em suas vidas, enquanto que os masculinos agem de maneira estereotipada – porém certeira – quando descobrem as vantagens do que significa ser um “homem de verdade” no mundo real; além de também possuírem seus próprios monólogos, sendo o ápice desse conceito a cena musical em que o personagem de Gosling explica o “sofrimento” que é ser um Ken.

Watch Ryan Gosling Sing 'Just Ken' From the 'Barbie' Movie
Ken (Ryan Gosling) canta “I’m Just Ken” como uma ironia sobre o “sofrimento de ser um homem”. (Foto: Divulgação/Warner Bros.)

Ou seja, apesar de ser uma crítica óbvia, ela funciona dentro do filme pois Greta sempre a ampara na comédia. O exagero do mundo criado pela diretora permite que essa frontalidade de monólogos longos e expositivos e personagens caricatos seja trabalhada. Sim, não é profundo. Sim, não é sutil. Mas, de fato, não deveria ser.

O problema, no entanto, está em outra camada que o filme utiliza em várias cenas: o aspecto emocional. É preciso lembrar que Barbie (2023), apesar de recheado com críticas, ainda é um produto Mattel. E como o produto de uma marca, a intenção sempre é o lucro – no caso desse filme, incentivar a compra das bonecas. Desse modo, além de tecer as críticas mencionadas, o filme também se preocupa em emocionar o espectador, resgatando a potencial memória que o público possui com a boneca Barbie – principalmente amparada pela personagem humana de America Ferrera. 

Nesse sentido, apesar de supostamente bem intencionada, toda a crítica aos executivos da Mattel soa bastante cínica. Afinal, é um tanto irônico que o filme possua comentários contra a mentalidade capitalista e machista da empresa enquanto tenta emular emoções nostálgicas, como em uma propaganda, sobre um brinquedo pertencente a ela mesma; principalmente quando a obra utiliza a figura da falecida criadora da Barbie, Ruth Handler, como uma tentativa de melhorar a imagem da empresa ao acenar para o fato de que a “Mattel verdadeira”, na verdade, é aquela fundada por uma velhinha comprometida com a infância emponderada de garotinhas. Toda essa questão, inclusive, se assemelha à cena final em que o CEO interpretado por Will Ferrell muda de ideia e aceita a sugestão das personagens humanas em criar uma “Barbie normal” pois, como verificado pelo seu assistente, tal conceito seria um sucesso de vendas. No fim, os executivos de verdade – envolvidos na produção do longa – parecem aceitar essa ridicularização em prol da construção de um imaginário no espectador sobre o que é a Barbie e a Mattel.

Porém, para além de tornar cínica essa crítica em específica, o lado emotivo da obra também destoa completamente da proposta central de uma comédia frontal. No filme, Barbie possui uma crise de identidade sobre quem ela é e qual seu papel no mundo – seja o nosso ou seu próprio. E apesar de uma carreira ainda recente na direção, é possível reconhecer a presença desse tema nos dois últimos filmes de Greta Gerwig: Lady Bird (2017) e Adoráveis Mulheres (2019). Neles, entretanto, a diretora se cercava do drama para tratar do assunto. Logo, o que Barbie (2023) tenta tratar como profundo se transforma, por consequência, em superficial. Afinal, como mencionado anteriormente, toda a narrativa é construída de maneira comicamente escrachada e frontalizada, forçando Gerwig a apelar para o uso de uma trilha sonora melosa e close-ups no rosto com lágrimas de Margot Robbie para causar o impacto emocional desejado.

Barbie (Margot Robbie) com lágrimas nos olhos após se conectar com a criança dona da versão de sua boneca. (Foto: Divulgação/Warner Bros.)

Em suma, há uma dissonância entre as duas facetas presentes no longa, com a comédia constantemente se chocando com o apelo emotivo. No entanto, apesar de tais pontos, o cerne da obra está justamente nos aspectos que mais funcionam – as críticas envelopadas pela comédia -, tornando Barbie (2023) uma experiência cinematográfica mais glamorosamente rosa do que um simples azul.