Atenção: Este texto contém spoilers!
Apesar do cinema ter surgido no final do século XIX – há mais de 100 anos – ele ainda seria considerado uma criança se comparado em termos históricos a todo contexto artístico da humanidade. Não à toa, o cinema é tido como a sétima das artes; ou seja, antes mesmo de nascer, diversos outros formatos tiveram não apenas o tempo de existir mas, principalmente, amadurecer. Na realidade, a própria essência do cinema – e grande parte de seu charme – está no fato dele ser uma mescla de todas essas outras seis artes que o precedem.
Dentre elas, aquela com maior credibilidade nas sociedades ocidentais definitivamente é a literatura. Desde Homero, as narrativas escritas foram as primeiras a serem desenvolvidas e, consequentemente, usadas como modelo para a elaboração de futuras histórias – como o famoso conceito de Campbell sobre a “jornada do herói”, por exemplo. Como resultado, a literatura adquiriu um enorme peso em cima de outras formas de arte, principalmente no cinema. De maneira subconsciente, uma parcela majoritária da audiência tende a justificar sua opinião sobre audiovisual exclusivamente através de um elemento: o roteiro.
Claro, a escrita é de suma importância para uma narrativa cinematográfica, principalmente com relação aos rumos da história e as características iniciais de cada personagem – que podem muito bem ser alteradas durante as filmagens pelo próprio diretor. Porém, tratá-lo como o definidor qualitativo de uma obra – atenção – audiovisual (imagem + som), é, no mínimo, curioso. A demasiada valorização do roteiro em detrimento de outros elementos que compõe o cinema automaticamente os renega ao status de simples apetrechos que “enfeitam” a história retratada; sendo que, em muitos casos, a dita “história” de um longa está muito mais na forma em que ela é contada do que no conteúdo propriamente.
Desse modo, a compreensão desse conceito se torna vital para assimilar a ideia utilizada por Robert Eggers (A Bruxa e O Farol) para a direção de ‘O Homem do Norte’. Ao retratar a história de um garoto que busca vingança pelo pai, o diretor parece estar mais preocupado em transmitir através de imagens uma sensação de maldição presente na jornada do protagonista do que de fato desenvolver uma narrativa complexa sobre o tema.
Logo de início, ao matar o rei Aurvandill (Ethan Hawke) nos primeiros 15 minutos de exibição, o filme deixa bem claro suas intenções. As poucas cenas iniciais entre pai e filho servem apenas para contextualizar o espectador, e não desenvolver a relação de ambos. Afinal, quanto antes o diretor começar o mote de vingança, mais cedo ele consegue criar essa aura amaldiçoada que cerca as intenções de Amleth (Alexander Skarsgård) perante o assassino de seu pai. Não à toa, após o fatídico acontecimento, Eggers praticamente resume todo o plot do longa ao filmar a fuga de barco do garoto enquanto o faz verbalizar literalmente a seguinte frase: “Eu vou vingá-lo, pai! Eu vou salvá-la, mãe! Eu vou matá-lo, Fjölnir!”.
A trama é básica e facilmente sintetizável pois, no fim, ela é o que menos importa aqui. O fato do próprio filme explicar como será sua estrutura através da profecia dita pelo personagem do Willem Dafoe serve como a implantação de uma marca dessa “maldição” intrínseca à vingança, com os personagens repetindo constantemente o óbvio final da história: Amleth se vingará, mas pagando o preço de tal ato com sua vida. Basicamente, o destino dos personagens é selado e revelado para o público antes mesmo de qualquer clímax ou conflito ser estabelecido.
Assim, quando o protagonista encontra o seu alvo (de maneira relativamente rápida, aliás), ele opta por atormentá-lo gradativamente ao invés de enfim o matar, tornando o segundo ato inteiro uma mera desculpa para a criação de cenas que exploram potenciais aspectos sensoriais de uma maldição presentes no contexto imaginário da mitologia nórdica. Para esse propósito, há três elementos que se sobressaem: fotografia, trilha sonora e decupagem.
A primeira, com uma coloração escura e acinzentada, constrói um mundo apático, frio, praticamente morto. Um local onde apenas sentimentos unilaterais como ódio e vingança encontram espaço para prosperar. Como cataratas que impedem o ser humano de enxergar além, o mundo do protagonista possui a mesma cor da doença ocular. Cegado pela vingança, Amleth deixa sua amada com um filho no ventre em prol da finalização de seu objetivo. No fim, a profecia revelada inicialmente na trama se conclui apenas pelo fato do protagonista ser incapaz de vislumbrar um futuro alternativo daquele apresentado à ele.
Paralelamente, a trilha sonora formada por arranjos de gritos de vikings e acordes graves estabelecem uma aura imponente para a jornada do protagonista. É como se a trilha fosse moldada a partir dessa maldição presa à vingança, tornando-a praticamente uma canção de ritual profano, tocada e repetida constantemente ao longo do filme, relembrando Amleth – e o espectador – do sentimento que o domina. Além de, simultaneamente, também auxiliar no ritmo da montagem, criando um fluxo contínuo que interliga as cenas; afinal, graças a simplicidade da trama, o objetivo delas é praticamente o mesmo.
Logo, por focar na construção plástica das imagens – principalmente no uso de uma violência gráfica – em conjunto com uma relação performática das cenas, o filme alterna sua decupagem em planos fixos e closes-ups fechados no rosto dos atores com longos planos-sequência – geralmente em cenas de ação – que praticamente simulam uma cutscene de videogame.
Nos planos estáticos, o diretor se aproveita da sensação claustrofóbica para potencializar essa aura maldita do longa, forçando o espectador a encarar imagens extremamente violentas que reforçam tal conceito. Assim como a profecia, os planos são impositivos, com pouco espaço para possíveis interpretações a partir de elementos extra-campo – isto é, ações que ocorrem na cena, mas não são enquadradas. Assim, a maleabilidade da câmera durante os momentos de ação possui um papel semelhante, porém mais focado no aspecto performático que, devido a unilateralidade da narrativa, assemelha-se à coreografia de uma violenta batalha de videogame em que a “câmera” passeia pelo ambiente, observando a sanguinolência do momento. No fim, ambas as técnicas auxiliam para a construção da sensorialidade vingativa inerte ao universo do filme – não apenas em Amleth.
É uma pena, entretanto, que o diretor tente acrescentar uma certa complexidade na trama após tanto tempo tratando-a de maneira simplória – o que funcionava perfeitamente, como descrito até aqui. Após o protagonista descobrir que sua mãe sofria abusos do pai pelo qual jurava justiça (o que consequentemente a torna uma aliada do “vilão” que a libertou), Eggers decide adicionar camadas que relativizam o ponto de vista dicotômico entre “certo e errado” de toda a jornada por vingança, acrescentando tons de cinza numa história até então preto e branco. O que, na verdade, é uma ideia interessante que até mesmo dialoga com o conceito de uma narrativa amaldiçoada por criar uma confusão moral no espectador – além de gerar uma das melhores cenas do longa.
Porém, o filme trata essa questão como um elemento isolado que não se integra à narrativa em diante. Após a dita revelação, o longa volta a desenvolver sua essência através da mesma simplicidade inicial, o que transforma uma ótima ideia em um mero recurso momentâneo inserido no meio de uma trama que já caminhava bem.
Em suma, todo o roteiro de ‘O Homem do Norte’ é condicionado exclusivamente para favorecer a condução estilística do diretor. Um cineasta recente com apreço pela plasticidade que suas imagens possuem, desenvolvendo através delas não apenas sua marca como artista, mas também uma complexidade sensorial para tramas aparentemente simples.