Como cineasta, Steven Spielberg sempre possuiu duas facetas passíveis de serem identificadas em sua filmografia: o lúdico e o real. Embora a maioria de seus filmes adote uma mescla dos dois, geralmente cada obra desenvolvida pelo diretor ao longo dos anos pendia para um desses lados de modo mais extremo. Junto de ‘Indiana Jones’ e ‘ET: O Extraterrestre’, Spielberg também produziu ‘A Lista de Schindler’ e ‘O Resgate do Soldado Ryan’, por exemplo. A maneira homogênea com que a direção conseguia imprimir esses dois conceitos para as telas tornou-se uma das principais marcas de Spielberg quanto artista; e em seu novo filme, ‘Amor, Sublime Amor’, o equilíbrio perfeito entre os dois foi atingido.

Adaptando um clássico de William Shakespeare (Romeu e Julieta), ‘Amor, Sublime Amor’ substitui as famílias Montecchio e Capuleto pelos Jets e Sharks, gangues rivais de jovens disputando o domínio das ruas de Nova Iorque. Na história do roteirista Arthur Laurents, a grife da nobreza é substituída pela delinquência juvenil; e a busca por poder territorial cega os personagens não apenas pela violência desnecessária, mas também por não compreenderem que, no fim, os detentores daquele local jamais serão crianças de rua, mas sim os poderosos que os desprezam. A batalha uns contra os outros impossibilitam os personagens de ‘Amor, Sublime Amor’ em focar no verdadeiro inimigo.

No meio de toda essa rixa, a história possui seu próprio Romeu e Julieta: Tony e Maria. No entanto, ao invés da famosa sacada de Shakespeare, os dois possuem apenas escadas de incêndio nova-iorquinas para declararem o amor que sentem um pelo outro. De modo geral, Laurents arquiteta uma adaptação que adiciona ainda mais camadas para uma história já complexa e tão renomada.

Tony (Ansel Elgort) e Maria (Rachel Zegler) apaixonam-se após noite no baile. (Foto: Disney+ Brasil)

Sendo assim, com peças de teatro e um filme produzido em 1961, Steven Spielberg chega em 2021 para não apenas refazer um clássico, como também dirigir seu primeiro musical; e que sua versão consiga superar o original de Robert Wise não causa nenhum espanto. Ao longo de toda filmografia, Spielberg sempre foi um diretor formalista, com um domínio atroz nos enquadramentos que realizava e no ritmo que seus filmes possuíam. Desse modo, a maior mudança que Spielberg realizou em seu trabalho de câmera para a condução da história de ‘Amor, Sublime Amor’ foi trazer ainda mais o que há de essencial para uma obra desse gênero: musicalidade.

Mesmo em momentos apenas falados, a decupagem das cenas e a maneira com que a câmera se movimenta transmitem exatamente o tom lúdico característico do diretor; um fator que encaixa perfeitamente na narrativa da obra. A paixão incontrolável de um casal e o espírito inquietante da juventude em dançar, viver e sonhar; como a câmera de uma história como essa poderia observar estaticamente esses personagens sem também sentir a energia revigorante que vibra e emana sobre eles?

Nesse quesito, a fotografia das cenas e a direção de arte que compõe os cenários possuem um papel semelhante na vitalidade do todo. A iluminação estourada (e quase artificial) presente tanto em locais abertos quanto fechados da cidade e as cores vibrantes presentes nas roupas e carros de West Side criam uma aura fantasiosa que permeia o filme do começo ao fim.

Jets (esquerda) e Sharks (direita) demonstram rivalidade através de danças coreografadas durante noite no baile. (Foto: Divulgação/20th Century Fox)

No entanto, assim como em ‘Romeu e Julieta’, a história de ‘Amor, Sublime Amor’ não poupa as ações dos personagens das duras consequências presentes na crua realidade da vida. Apesar de serem apenas garotos brigando por razões fúteis, uma vez que um canivete perfura o corpo de outro, mesmo que acidentalmente, o conflito perde todo o sentido. Devido esse fator, especificamente, Spielberg encontra um harmonioso equilíbrio entre seu caráter real e fantasioso como artista na direção desse filme. Todos os acontecimentos envoltos em morte e ódio possuem a mesma roupagem daqueles belos e apaixonantes. De certa forma, Spielberg simboliza a esperançosa visão de vida dos personagens através dos elementos técnicos guiados pela sua direção para que, assim, elas cresçam nos momentos amorosos e entrem em choque durante os trágicos na mesma proporção.

Essas eram ideias também presentes na versão original de 61, porém a direção de Wise as trabalhava de modo mais solto. O aspecto da teatralidade era trazido pelo diretor através de planos mais abertos e com pouca movimentação; um fator que Spielberg também alcança (principalmente na composição quase “artificial” dos cenários), porém de maneira muito mais concisa e inventiva do que o original.

À esquerda, ‘Amor, Sublime Amor’ (1961) de Robert Wise. À direita, a nova versão de Steven Spielberg em 2021.

Por fim, a paixão de Spielberg pela narrativa de ‘Amor, Sublime Amor’ é sentido a cada instante das 2 horas e 36 minutos de filme. A história ideal para que o diretor pudesse trabalhar de maneira simultânea os aspectos lúdicos e reais intrínsecos a sua essência de artista; criando, assim, um filme de amor tão sublime quanto do referido título da obra.